quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O Futebol de rua... está ou não em vias de extinção?

Mais uma artigo do Treinador Carlos Carvalhal. Começa com uma palestra de Sir Ken Robinson, para depois dar a sua opinião/experiencia. Nesta palestra fala-se do chamado "Futebol de Rua", aquele que era jogado nos terrenos baldios e com pedras a fazer de baliza. Onde a criatividade e as evolução natural da coordenação motora eram as principais armas que uma criança poderia ter.


«Criatividade
Reflexão sobre uma palestra de Sir Ken Robinson.

Estamos a aplicar mal os nossos talentos, muitas pessoas passam uma vida sem descobrir o talento que têm dentro de si.
Sir Ken Robinson

Esta semana o imortal Maradona fez 50 anos! Tive o grato prazer de viver num período que me permitiu deliciar com o seu génio, a sua arte , a sua criatividade…

Maradona, como Pelé, Eusébio, Ronaldo, Cristiano Ronaldo, Zidane, Ronaldinho Gaucho, Messi, etc, cresceu num bairro humilde! A bola era o seu brinquedo e o contexto era de auto-aprendizagem. Foi a jogar na rua descalço, em pisos de terra batida muito maus, com buracos e ramos de árvores que vivenciou e se descobriu na arte de jogar futebol.

Este contexto de grande dificuldade de execução e ao mesmo tempo extremamente divertido foi muito importante para a criação do seu ADN futebolístico, arte em movimento que espalharam pelos melhores palcos do mundo.

Em terrenos baldios, sem treinadores ou árbitros (com regras estipuladas pelos meninos), com número de jogadores definido pela quantidade existente ou pelo equilíbrio ao fazer as equipas que eles próprios buscam para que exista competição (jogando assim 1x1, 2x2,4x3, 6x4). Jogava-se e joga-se um futebol livre, de constante ensaio/erro e de prática ininterrupta. Errar é permitido e encarado como uma oportunidade para o que vem a seguir: ”na próxima vou conseguir!”. O contexto permite repetir o erro até conseguir o seu objectivo. A aprendizagem é realizada num contexto muito particular e específico.

O ter e poder driblar, ter a capacidade de conduzir, passar e fintar de forma a que, para além de driblar os adversários, tivessem que fazer o mesmo às pedras e aos buracos, evitando a todo custo cair… é que cair num piso destes deixa marcas no corpo. Tudo isto permite adquirir uma destreza impar, de reforço de todos os sentidos: sensorial, motor, auditivo, entre outros.

Pelo facto de jogarem descalços e/ou também nestes terrenos acidentados permite que a sensibilidade do pé seja exponenciada, sendo a motricidade fina destes jogadores desenvolvida de uma forma muito natural. Daí termos visto e vermos estes jogadores com uma habilidade impressionante, fazendo com que a bola pareça um extensão do seu corpo, ela é parte integrante do corpo em movimento.

Sei o que estão a pensar: Um génio não se faz, nasce! Estou de acordo em parte com esta ideia! O génio tem uma predisposição genética, mas chegará para atingir o alto nível se não for de outra forma estimulado? Não precisará de um contexto ideal para evoluir? Será que num clube com treinadores, regras rígidas e num contexto formal eles se desenvolvem da mesma forma?

Já alguma vez sentiram a sensação de ouvir ou ler alguma coisa e dizer, “é mesmo isto que penso e sinto, mas não sabia como o expressar…” Foi isso que senti ao ver uma palestra de Sir Ken Robinson sobre criatividade! Fiquei tão fascinado que resolvi tentar fazer uma analogia com o futebol…

A palestra alerta-nos para a necessidade de um novo Paradigma educacional, centrado no descobrir e desenvolver as competências individuais de cada ser humano, criticando o paradigma vigente relativamente à educação e à forma como “produzimos” cada vez mais Tecnocratas.

Ken Robinson define Criatividade como o processo de gerar ideias originais e com valor que surge normalmente pela interacção de diferentes formas de ver as coisas.

Por aqui podemos aferir a importância de desenvolver os sentidos e de experimentar as sensações em contacto com o meio (perspectiva ecológica) de forma a testarmos todas as nossas capacidades fazendo do ensaio/erro uma auto-descoberta.

A individualidade é assim um conceito obrigatoriamente agregada à noção de criatividade: o que vivencio enquanto jogador potencia as minhas qualidades, exponenciando-as; faz com que codifique de determinada forma o significado do que vivi, determinando também a conexão que farei com episódios semelhantes no futuro.

Em suma, a auto-descoberta é resultado de UM percurso singular, percurso esse que poderá exponenciar as minhas CAPACIDADES (únicas), através da minha INTELIGÊNCIA. Só esse processo bem singular e CONSCIENTE de auto-descoberta me tornará um criativo ÚNICO E NÃO REPRODUTÍVEL.

Por isso, Sir Ken Robinson referiu que “As comunidades humanas dependem de uma diversidade de talentos e não de uma ideia singular de capacidade. O mais importante dos nossos desafios é restabelecer a nossa noção de capacidade e inteligência”. A noção de capacidade e inteligência de cada um!

As características inerentes à inteligência referidas por este autor, reforçam o que escrevemos anteriormente. Considerando-a:

1º Diversa, uma vez que cada indivíduo pensa o mundo de todas as formas em que o experimenta: visualmente, com som, cinestesicamente, em abstracto, em movimento;

2º Dinâmica – a inteligência é maravilhosamente interactiva; não sendo o cérebro um órgão compartimentado, estabelece inúmeras e constantes interacções.

3º Distinta – reforça a ideia de individualidade antes exposta. Existem pessoas que precisam de se mover para pensar.

“O futuro é imprevisível… todos nós sabemos que as crianças têm extraordinárias capacidades, capacidades para a inovação. Temos crianças que são fantásticas, para mim encontraram o seu talento. Todos os miúdos têm talentos fantásticos e nós estragamo-los impiedosamente.”

Esta expressão de Sir Ken Robinson é fantástica e transporta-nos para o centro da questão! Será que é assim tão importante que crianças de 6, 8, 10 anos joguem assim tão bem colectivamente? Jogar “obrigatoriamente” a 1 ou 2 toques? Será que nestes escalões as equipas não tem treinador a “mais”? Não deverá ser também o presente imprevisível para esses jogadores e sobretudo para os seus adversários?

Sabemos que a realidade (tirando África, e alguns países da América do Sul), não permite já que a criança teste todas as suas capacidades de uma forma livre, que façam a sua auto-descoberta! Os meninos não têm espaço para jogar na rua, e quando este existe há o problema da insegurança! O espaço de desenvolvimento e afirmação passou para a escola (quando existe este espaço de recreio), bem como para as Academias de jogadores, de uma forma organizada e formal. Esta não é uma critica á nossa formação, mas acho que é merecedora de um imperativo de reflexão deixada ao leitor!

Quem sabe de crianças, reconhece que elas nos surpreendem diariamente! A sua evolução é fantástica, por vezes vejo autênticos talentos e ponho-me a imaginar como se desenvolverão estes meninos nos próximos 5 anos… já fiz esta experiência mais do que uma vez! Fiquei desiludido! Podem-se levantar inúmeras questões à volta deste tema e todas são aceitáveis de certeza… mas conhecem com certeza muitos casos em que os filhos tiram um curso só para agradar aos pais?! Vale a pena fazer a analogia com a prática de futebol e reflectir sobre isso!

Cristiano Ronaldo, Messi, Hulk e Di Maria são olhados como jogadores criativos, mas também como indivíduos únicos! As suas capacidades inatas, bem como as interacções e significações vividas em cada tentativa/erro ou tentativa/sucesso por eles vivenciadas, tornaram-nos singulares como os conhecemos. Tiveram a inteligência e a felicidade de poder DESCOBRIR e DESENVOLVER AS SUAS COMPETÊNCIAS INDIVIDUAIS.

Puderam certamente ERRAR, ao longo do seu processo informal (na rua) e formal (nos clubes, em equipa), mas atribuíram com toda a certeza significado aos erros! Todos os miúdos arriscam, se não sabem tentam…não receiam estar errados! Ken Robinson consolida esta ideia ao referir que “Estar errado não é ser criativo, mas se não estiverem preparados para errar nunca conseguiremos nada de original”. A maior parte das crianças por isso, quando chegam a adultos perdem essa capacidade (intrínseca) porque tem medo de errar. Estamos a educar pessoas sem a sua capacidade criativa.

Picasso disse uma vez que todas as crianças nascem artistas o problema é mantê-las artistas enquanto crescemos. Não crescemos para a criatividade, afastamo-nos dela! Ou antes, somos educados para a perder! Essa é uma das grandes funções do treinador: decompor a palavra CRIATIVIDADE, permitir ao jogador “criar” sempre em “actividade”, mantendo-o “artista” até atingir o top, até ser jogador de Alto Rendimento!»

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